domingo, 31 de outubro de 2010

Formação integral - Do Hospital à comunidade

Diversidade

O funcionamento dos cuidados de saúde em rede é um modelo organizativo com benefícios reconhecidos. Se o leitor português pensar no nosso próprio país, no longo caminho percorrido em pouco mais de 3 décadas, a esse respeito, pode ter uma vaga ideia das dificuldades de funcionamento desse modelo no contexto santomense.
O primeiro problema passa pela inexistência de ensino universitário no país, nomeadamente, ausência de faculdade de medicina. Os profissionais médicos recebem formação pré-graduada em países e realidades médicas tão díspares como Cuba, Moçambique, Macau, Brasil e, em muito menor número, em Portugal; A formação pós-graduada só aconteceu em apenas uma minoria dos que se dedicam à saúde da criança.

Uniformidade
Para que a diversidade seja um ganho, e não dispersão, é vital chegar a acordo e compromisso conjunto, entre as diferentes partes, quanto a atitudes e práticas que devem imperar no dia a dia assistencial de todos quantos se dedicam ao atendimento da população pediátrica.
A introdução de protocolos assistenciais, entendidos de forma partilhada a todos os níveis desse sistema em rede, é uma das formas de contribuir para a uniformidade das práticas.
Aproveitando a ocorrência epidémica anual do surto de diarreia aguda na população infantil, que todos esperam ocorrer no fim da Gravana, foi feita, junto dos responsáveis hospitalares e comunitários, a proposta de um protocolo de actuação, baseado nas recomendações da OMS, publicadas em site próprio. Na sua elaboração, foram tidas em conta as orientações do AIDI (Atenção Integrada às Doenças da Infância), plano elaborado no início dos anos 90 pela OMS e UNICEF.
A nível hospitalar, foi feita apresentação descritiva, sob responsabilidade da Drª Neyda, pediatra cubana, revendo aspectos da etiologia, fisiopatologia, apresentação clínica e princípios de actuação terapêutica.
A nível comunitário, com a colaboração do Dr. Edgar Neves, foi, em primeira fase, agendada reunião de discussão do protocolo com os Delegados de Saúde de todas as regiões da ilha de São Tomé e da ilha do Príncipe.




O ambiente da reunião foi o de uma conversa amena, com troca de impressões e conhecimentos, reflexão compreensiva sobre práticas e comparação de realidades de saúde infantil muito diferentes.
Na proposta feita, o acento foi colocado sobre as questões de utilidade e segurança na abordagem terapêutica. Um tratamento é tanto mais útil quanto maior é a probabilidade de alterar a história natural ou de eliminar as complicações da doença - a primeira tónica foi então o tratamento e prevenção adequados da desidratação.
O uso muito frequente de anti-eméticos ( metoclopramida e prometazina) e de antibióticos ( mesmo em casos de diarreia sem características de desinteria, em criança saudável) foi uma das principais diferenças relativamente à prática portuguesa. A este propósito, reflectimos sobre segurança da terapêutica - aspecto de primeira importância em pediatria - a qual requer que se abandonem as atitudes que, sendo supérfluas, podem em simultâneo acarretar riscos, muitos não remediáveis perante recursos escassos.


Formação nos Centros de Saúde
Posteriormente, com acordo dos delegados, participei em acções de formação de profissionais de enfermagem, destacados a trabalhar nos centros e postos de saúde das áreas de Caué, Canta-Galo e Mé-zochi.






Aproveitando tudo o que aprendi com a reunião junto dos delegados de saúde, agora a formação foi centrada no reconhecimento dos sinais de desidratação, na correcta classificação quanto à gravidade e no seguimento dos algoritmos de actuação, passo a passo, com cenários clínicos hipotéticos e discussão em jeito de pergunta-resposta.






Foi elaborado ainda um teste de resposta múltipla, a que os enfermeiros responderam no pré e no pós-formação, destinado a correcção e auto-avaliação.

Quando comecei a escrever pensei que seria o meu último post, mas ainda falta um.
Até breve.

sábado, 23 de outubro de 2010

Díade Mãe-Filho em São Tomé



A Mulher

Impressiona qualquer um a Mulher santomense: carrega alguidares de roupa durante quilômetros até ao rio, sem nunca perder o equilíbrio, e geralmente tem o peso adicional do bebé, que transporta sempre às costas, enfaixado em panos de cores garridas. Se marco uma consulta, e quando consigo que a mãe entenda o quão importante é não faltar, fazem 10 ou mais quilômetros a pé, depois de se levantarem de madrugada, e chegam ao serviço do hospital ainda antes de mim.


A taxa de natalidade da Ilha é das maiores do mundo, e a primeira gravidez ocorre em idade muito jovem, quase invariavelmente; não é raro encontrar mulheres que, com a mesma idade que em Portugal se inicia o estudo universitário, têm já um ou dois filhos.

Acresce que, mercê da cultura do pais, a mulher santomense se ocupa de tudo o que diz respeito à vida familiar, sem nenhuma actividade que lhe garanta sustento próprio e, pelo paradigma contemporâneo do Ocidente-Norte, a independência.

No que respeita à vivência familiar, essa dedicação a tempo inteiro constitui, em regra, o único elemento de constância relacional para a criança; observo também a carência de instituições comunitárias, como creches, escolas e parques infantis, capazes de garantir o estímulo complementar para o desenvolvimento integral da criança santomense. Esse desenvolvimento passa, então, por estas mães e pelo que são capazes de fazer enquanto desempenham esse papel.



A Criança

Mal nascem, independentemente do peso, são transportados às costas das mães, e começam a deambular muito cedo (alguns com 9 meses já dão os primeiros passos decididos). Em contraste com o excelente desenvolvimento motor, muitas crianças são muito pouco verbais, e é mesmo difícil conseguir que digam o nome ou a idade até depois dos 3 anos. Durante as consultas a maioria é calma, curiosa e as birras e as exigências perante os pais são raras. Crescem livremente, saudáveis ou doentes. Quando têm idade para ir à escola, andam quilômetros na berma da estrada para receberem a lição, sem medo, sozinhas.


A maioria não tem o leite, a carne ou o ovo como parte da sua alimentação. No contexto actual, o lúdico e a protecção da criança ainda não são valores firmemente assentes no quotidiano santomense.



Operação Nariz Vermelho no Hospital Ayres de Menezes

Com muito agrado, recebi a proposta de colaborar, participando, na primeira Operação Nariz Vermelho realizada no pais. A ONG T.I.A., representada pela Drª Mafalda Velez Horta, jurista de formação, e a viver na ilha há mais de dois anos, foi a entidade responsável pela organização e logística do evento.

A proposta nasceu de um encontro de sensibilidades sobre a necessidade de estimular as crianças internadas trazendo-as até um tempo de brincadeira pensado para elas.





Na iniciativa participaram voluntários santomenses e portugueses.





Surpreendidas de início...



Rendidas pouco depois...






O lúdico é ainda o recipiente ideal para passar mensagens, dentro de um processo de apropriação cultural.




O transporte da criança em posição lateral potencia os momentos de interacção mãe-filho, rosto com rosto, modelando afectos, linguagem e competências sociais em mãe e filho.

A ambição maior deste projecto é não ser um evento extraordinário, mas antes, repetindo-se, entrar na rotina hospitalar e nos hábitos da comunidade.

Abraço e até próximo post.







quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Visitas durante a Gravana

Chegada à ilha em plena Gravana, pude contar com visitas de profissionais do Hospital São João, ao longo dos meses de Agosto e Setembro.

Os cuidados diferenciados beneficiam o indivíduo

Representando o Serviço de Cirurgia Pediátrica do HSJ, o Dr Bessa Monteiro permaneceu uma semana no Hospital Ayres de Menezes. Durante a sua visita foi feita a reavaliação das crianças submetidas a cirurgia em Portugal ao longo deste ano. Sendo uma visita programada, foi possível organizar um tempo de consulta para avaliar crianças referenciadas pelos profissionais locais que pudessem beneficiar de intervenções cirúrgicas diferenciadas. As lesões malformativas (urogenitais, das extremidades) e fenda lábio-palatina foram os principais motivos de referenciação.
Com grande simplicidade, o Dr Bessa Monteiro preparou também uma breve exposição sobre os problemas cirúrgicos mais frequentes em ambiente ambulatório e respectivo tratamento. Durante a exposição foram muitos os momentos de discussão e troca de impressões entre o orador e os cirurgiões do Hospital Ayres de Menezes. Antes da despedida, tempo ainda para um jantar com o Dr Edgar Neves, onde, além do saldo positivo da visita, foram realçados os laços de amizade que unem os dois países e um património inestimável que partilham - a Língua portuguesa.



O Homem como Sujeito e Fim da Medicina

No final de Agosto, recebemos a visita da Drª Diana, profissional com experiência de campo na avaliação e intervenção nutricional na comunidade em países pobres da América do Sul e África. Em Portugal, integra a equipa de Nutrição pediátrica do Hospital São João.
Durante a estadia do meu colega Ricardo Bianchi, foi iniciado um estudo na população infantil da ilha para caracterização do seu estado nutricional, com formação e participação de enfermeiros e técnicos de nutrição locais, sob orientação da Drª Diana. O estudo, transversal, será realizado com a coordenação do Prof. António Guerra e com o apoio do Serviço de Estatística do Hospital São joão.
Os resultados da primeira amostra de crianças avaliadas (totalizando cerca de 90), apresentados em reunião hospitalar, sugerem que, além do problema da desnutrição, o problema da obesidade infantil também terá expressão significativa na ilha. Como sinalizado pela OMS, a obesidade, nomeadamente na população pediátrica, é um problema em crescendo, inclusivé em países pobres, fruto da deterioração dos hábitos alimentares, onde primam os produtos processados.
No contexto santomense, a ausência de agricultura e pecuária em média-grande escala, implica importação da maioria dos produtos alimentares, incluindo bens de primeira necessidade em nutrição infantil, como é o caso do leite, o que acarreta custos impossíveis de suportar para a grande maioria das famílias.
Durante os próximos meses, o estudo deverá ser alargado para abranger cerca de mil crianças, de forma a garantir representatividade e significado. A dimensão deste estudo representa um esforço no sentido de se conseguirem apontar caminhos e medidas de Saúde pública para melhorar a nutrição de todas as crianças da ilha como objectivo último. É bom ver a ciência ao serviço das pessoas.


Voluntariado na comunidade de Plateau

Além das minhas funções no hospital e nos centros de saúde, tive oportunidade de participar como voluntária na assistência a crianças pertencentes à comunidade de Plateau, uma das roças mais pequenas da Ilha, e pertencente à área de intervenção da Santa Casa da Misericórdia.
À minha chegada, acompanhada pela Filipa (uma das voluntárias da Santa Casa), parecia que não haveria crianças para a consulta. Mas, assim que se abriu o posto de saúde local, uma estrutura em madeira pintada, as crianças e as mães aproximaram-se devagarinho da porta.


Fui observando as crianças uma a uma, algumas merecendo referenciação a consulta hospitalar.


Um dos pequenos heróis nesse dia, chamado Natalino, tinha uma ferida profunda no 4º e 5º dedos da mão provocada por um machim. Suportou sem queixas a retirada do lenço que cobria a ferida, a desinfecção e a nova ligadura.


À medida que vou conhecendo estes pequenos e as suas histórias, vou alcançando, muito além do intelectual, o significado da palavra resiliência.
Abraço para todos de STP.